segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Meu tipo inesquecível 1

Sempre tiro de um cantinho especial da memória as recordações mais gratas de determinadas pessoas que ao me apresentarem conceitos, conhecimentos e comportamentos, novos ou diferentes, coloriram, sem o saberem, parte integrante da minha personalidade. E uma, dentre muitas, se destacou pela sua presença de forma indelével. Seu nome: João de Carvalho.
Para quem não teve o privilégio de conhecê-lo, apresento esse resendense, que foi irmão do Augusto de Carvalho, hoteleiro em Engº Passos, do Noel de Carvalho, Filho, rotariano de primeira linha, e de Maria de Carvalho, pianista e professora de piano.

Todas, pessoas ilustres e saudosas do nosso município. Todos, filhos de Noel de Carvalho, um dos mais ilustres poetas que esta terra teve a glória de aninhar.

Ah! Ia me esquecendo do outro irmão do João, o Frederico de Carvalho, jornalista e crítico literário que morava no Rio de Janeiro e que faleceu em Resende no dia 25.01.2008, pai do também jornalista Gustavo Praça, editor do jornal O Ponte Velha.

O Augusto foi prefeito de Resende, cargo também duas vezes ocupado por seu filho Noel de Carvalho, Neto, que é o pai, por sua vez, do atual prefeito, o Silvinho.

(Ora, pois, onde é que eu estava? - Ah, me lembrei!) O ano que corria era o de 1965 e o João de Carvalho o titular do 2° Cartório de Notas do Município de Resende, localizado na Rua Luiz Barreto, no centro da cidade, onde trabalhavam o seu irmão Noel, o Paschoal Izoldi, o João Gomes Jardim, e eu, o mais novo da troupe.

Eram tempos diferentes aqueles e a localização do cartório no centro da cidade ainda refletia sombras de um passado tipicamente provinciano, com os humores do progresso fincando pé de maneira resoluta nos Campos Elíseos.

João de Carvalho era uma pessoa que irradiava jovialidade e alegria, com um sorriso permanente nos lábios e um cigarro que, esporadicamente, teimava em enfeitar o seu visual. Tinha os olhos miudinhos para o seu rosto algo arredondado, o que o transformava numa figura simpática e agradável de se conviver socialmente. Dono de boas conversas, ocasiões em que ele mais falava do que ouvia, porém duro como um tronco de jaqueira quando era a sua vez de ouvir, sempre atencioso e prestativo. Jamais o vi tergiversando, visto que um de seus atributos mais persistentes era justamente a fidelidade à verdade, notada claramente nas suas palavras e atitudes. Essa imagem alegre e descontraída contrapunha-se, entretanto, àquela apresentada quando estava aborrecido ou triste, ocasiões em que não conseguia esconder os seus sentimentos que transpareciam literalmente representados e sem retoques na sua face. Nessas raras ocasiões, apertava os lábios, murchava a boca e franzia dramaticamente as sobrancelhas, igualzinho ao Jack Nicholson que, seguramente, deve ter copiado o modelo de brabo ou de sisudo do nosso João!

Pois bem! Além de tabelião, o João era dado a fazendeiro, plantando cana-de-açúcar ali em São Caetano, pescador (Tem cada uma dele!) e... caçador. Adorava caçar inhambu, um pássaro mais rasteiro do que voador, de plumagem linda, cujas penas passam do castanho para o marrom e o preto, de carne considerada fina iguaria, peso e porte semelhantes aos de um frango na fase de muda para galo, muito caçados nas matas que ainda rodeiam Resende, até que o IBAMA promovesse a proibição da sua captura ou caça.

Se por um lado esse instituto promoveu a proteção de espécies animais, como a do inhambu, por outro privou-nos de bons fornecedores de histórias e entretenimentos!
Quando o João relatava uma das suas caçadas no cartório, parecia que ele revivia cada momento dela, de cada inhambu abatido a tiro de espingarda. E, dizia, era tiro mesmo, e não tiros, por que ele era bom nisso: pra cada inhambu, um tiro só! Era uma festa no cartório! O João contando a história e todos os que estavam ali, funcionários e fregueses, quedavam-se calados, a observar cada ato do nosso David Crocket, o Indiana Jones da época!

Até alguns habitués que se postavam nas portas do Bar Atlântico, localizado em frente ao cartório, percebendo as poses e a movimentação dele no seu interior, atravessavam a rua para também acompanhar mais de perto a mais uma incrível aventura daquele implacável caçador.

João, assim também ele afirmava, imitava com perfeição o piado do pássaro para atraí-lo até à sua posição de campana. Relatava com minúcias o aproximar do bicho, que se ouvia piando longe, vez ou outra, se aproximando, cada vez mais perto, o seu pio cada vez mais alto, o João respondendo a cada pio, pios que se ouviam até na esquina do Banco do Brasil, que ainda teimava em deixar o centro da cidade e que se localizava onde hoje funciona a Câmara Municipal.

Na sua narrativa, exprimia-se de corpo e alma, como se fosse um artista encenando uma peça e com uma performance que nenhum ator seria capaz de imitar. Abaixava-se atrás de uma mesa - como se ela fosse uma pedra - e se escondia atrás de um canto de parede - como se ali fosse uma árvore - e piava daqui, piava dali, e mudava de posição no interior do cartório, andando como se pisasse em ovos para, certamente, não quebrar algum galho caído e espantar o inhambu. Vez ou outra movimentava o braço esquerdo, como que se desvencilhando de um cipó, enquanto uma garrucha invisível permanecia firme e apontada para a frente na sua mão direita. A platéia permanecia num estado que misturava torpor e curiosidade, na expectativa do desenrolar daquela fatídica aventura para o inbambu, claro!

Até que ele iniciava o desfecho da história, que sempre acabava com o bicho na mira da sua garrucha. Ele então fechava, bem fechadinho, o seu olho esquerdo (Estou falando do João, porque o inhambu, a essa altura, devia estar com os olhos mais arregalados e maiores do que os dele.), num ato que provocava um repuxo do canto correspondente dos seus lábios e que colocava à mostra seus dentes cerrados. Então, imitando a sustentação da espingarda na posição de tiro, “apertava o gatilho” e explodia num violento “buuum”, como a imitar o barulho do tiro.

Terminava o relato da caçada parecendo exausto, os ombros arqueados, a “espingarda” agora apontada para baixo e um sorriso de garoto maroto, vencedor de mais um jogo difícil.

Corria, orgulhoso, os olhos pelo ambiente, numa verificação ”algo” desnecessária pela credibilidade da sua façanha. Estufava o peito e com uma das mãos passava os dedos pela rala cabeleira, como a limpar algum cisco da mata ou, quiçá, uma bosta de passarinho! Acendia um cigarro, dava uma boa tragada e jogava a fumaça para o alto, numa cena que parecia o desvanecer dos últimos sinais daquele tiro fatal e que simbolizava o fim daquele longa-metragem. Isso mesmo, gente! Melhor do que num filme!

Essa história poderia acabar por aqui mas, após mais de quarenta anos, fazendo eu parte de um grupo de cinco alunos de uma turma do Curso de Informática para a Terceira Idade, patrocinado pela UERJ, no Campus Avançado de Resende, fomos, os cinco colegas, por força de um trabalho conjunto, obrigados a aproximarmo-nos mais do que o nosso simples compartilhamento físico do mesmo laboratório. O compartilhamento de idéias agora era imprescindível! Comprometi-me com a colega Cecília (É esse o seu nome!) a apanhar em sua residência um artigo para inserção no jornal que deveríamos fazer como prova final.

- Onde ela morava?

- "Atrás da Igreja do Rosário!"

- Ao lado da casa que foi do sr. João de Carvalho?

– "Não! Naquela casa mesmo! Eu moro lá! Eu a sou a filha dele!"

Vocês não podem imaginar a minha alegria por essa descoberta! Depois de tantos anos... E, antes que eu me esqueça, o João de Carvalho teve dois filhos: o Maurício e a minha atual colega, a Cecília.

Conversa vai, conversa vem, falei-lhe da minha admiração pelo seu pai, graaande pescador... graaande caçador... e contei-lhe a historinha que lhes relatei acima. Ao que ela acrescentou: “Pois quando ele contava essa história lá em casa, a Mamãe (Saudosa dona Francisca, carinhosamente chamada de Quiquita!) pedia que alguém fosse correndo até a cozinha e voltasse de lá trazendo uma vassoura para limpar as penas do coitado do inhambu!”

Isso é um pouquinho do João de Carvalho que conheci. Passou por mim sendo muito mais do que um patrão: foi um amigo leal que, com seus exemplos, atuou de forma muito positiva na formação do meu caráter. Dele aprendi, de maneira serena, que devemos guardar com amor e carinho as nossas felizes experiências de vida e rememorá-las, revivendo-as vezes sem conta, sempre que possível, como num vídeo-tape, porém com toda a força de que dispusermos e com igual ou maior intensidade do que na primeira seção.
Foto do meu amigo João de Carvalho publicada na 138ª Edição do jornal O Ponte Velha, na qual este post também se constituiu em matéria nele publicada.
I bibida prus músicus!

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