quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Carta de um cidadão de Itajaí, SC


Meus amigos,

Hoje o sol saiu e conseguimos voltar a trabalhar. A despeito de brincadeiras e comentários espirituosos normais sobre esta "folga forçada" a verdade é que nunca me senti tão feliz de voltar ao trabalho. Não somente pelo trabalho, pela instituição e pela própria tranqüilidade de ter aonde ganhar o pão, mas também por ser um sinal de que a vida está voltando ao normal aqui na nossa Itajaí.

As fotos que circulam na internet e os telejornais já nos dão as imagens claras de tudo que aconteceu então não vou me estender narrando e descrevendo as cenas vistas nestes dias. Todos vocês já sabem de cor. Eu quero mesmo é falar sobre lições aprendidas.

Por mais que teorias e leituras mil nos falem sobre isso ainda é surpreendente presenciar como uma tragédia desse porte pode fazer aflorar no ser humano os sentimentos mais nobres e os seus instintos mais primitivos. As cenas e situações vividas neste final de semana prolongado em Itajaí nos fizeram chorar de alegria, raiva, tristeza e impotência.

Fizeram-nos perder a fé no ser humano num segundo, para recuperá-la no seguinte. Fez-nos ver que sempre alguém se aproveitará da desgraça alheia, mas que também é mais fácil começar de novo quando todos se dão as mãos.

Que aquela entidade superior que cada um acredita (Deus, Alá, Buda, GADU etc.) e da forma que cada um a concebe tenha piedade daqueles:

- Que se aproveitaram da situação para fazer saques em supermercados, levando principalmente bebidas e cigarros;

- Que saquearam uma farmácia levando medicamentos controlados, equipamentos e cofres e destruindo os produtos de primeira necessidade que ficaram, assim como a estrutura física da mesma;

- Que pediam 5 reais por um litro de água mineral;

- Que chegaram a pedir 150 reais por um botijão de gás;

- Que foram pedir donativos de água e alimentos nas áreas secas pra vender nas áreas alagadas;

- Que foram comer e pegar roupas nos centros de triagem mesmo não tendo suas casas atingidas;

- Que esperaram as pessoas saírem das suas casas para roubarem o que restava;

- Que fizeram pessoas dormir em telhados e lajes com frio e fome para não ter suas casas saqueadas;

- Que não sentiram preocupação por ninguém, algo está errado em seu coração;

- Que simplesmente fizeram de conta que nada acontecia, por estarem em áreas secas.

Da mesma forma, que essa mesma entidade superior abençoe:

- Aqueles que atenderam ao chamado das rádios e se apresentaram no domingo no Quartel dos Bombeiros para ajudar de qualquer forma;

- Os bombeiros que tiveram paciência com a gente no quartel para nos instruir e nos orientar nas atividades que devíamos desenvolver;

- A turma das lanchas, os donos das lanchinhas de pescarias de fim de semana que rapidamente trouxeram seus barquinhos nas suas carretas e fizeram tanta diferença;

- À equipe da lancha, gente sensacional que parecia que nos conhecíamos de toda uma vida;

- Aos soldados do exército do Paraná e do Rio Grande do Sul;

- Aos bravos gaúchos, tantas vezes vitimas de nossas brincadeiras que trouxeram caminhões e caminhões de mantimentos;

- Aos cadetes da Academia da Polícia Militar que ainda em formação se portaram com veteranos;

- Aos Bombeiros e Policias locais que resgataram, cuidaram, orientaram e auxiliaram de todas as formas, muitas vezes com as suas próprias casas embaixo das águas;

- Aos Médicos Voluntários;

- Às Enfermeiras Voluntárias;

- Aos Bombeiros do Paraná que trabalharam ombro a ombro com os nossos;

- Aos Helicópteros da Aeronáutica e Exército que fizeram os resgates nos locais de difícil acesso;

- Aos incansáveis do SAMU e das ambulâncias em geral, que não tiveram tempo nem pra respirar;

- Ao pessoal do Helicóptero da Polícia Militar de São Paulo, que mostrou que longo é o braço da solidariedade;

- Ao pessoal das rádios que manteve a população informada e manteve a esperança de quem estava isolado em casa;

- Aos estudantes que emprestaram seus físicos para carregar e descarregar caminhões nos centros de triagem;

- Às pessoas que cozinharam para milhares de estranhos;

- Ao empresário que não se identificou e entregou mais de mil marmitex no centro de triagem;

- A todos que doaram nem que seja uma peça de roupa;

- A todos que serviram nem que seja um copo de água a quem precisou;

- A todos que oraram por todos;

- Ao Brasil todo, que chorou nossos mortos e nossas perdas;

- Aos novos amigos que fiz no centro de triagem, na segunda-feira;

- A todos aqueles que me ligaram preocupados com a gente;

- A todos aqueles que ainda se preocupam por alguém;

- A todos aqueles que fizeram algo, mas eu não soube ou esqueci.

Há alguns anos, numa grande enchente na Argentina um anônimo escreveu isto:

Começar de novo

Eu tinha medo da escuridão
Até que as noites se fizeram longas e sem luz;

Eu não resistia ao frio facilmente
Até passar a noite molhado numa laje;

Eu tinha medo dos mortos
Até ter que dormir num cemitério;

Eu tinha rejeição por quem era de Buenos Aires
Até que me deram abrigo e alimento;

Eu tinha aversão a judeus
Até darem remédios aos meus filhos;

Eu adorava exibir a minha nova jaqueta
Até dar ela a um garoto com hipotermia;

Eu escolhia cuidadosamente a minha comida
Até que tive fome;

Eu desconfiava da pele escura
Até que um braço forte me tirou da água;

Eu achava que tinha visto muita coisa
Até ver meu povo perambulando sem rumo pelas ruas;

Eu não gostava do cachorro do meu vizinho
Até naquela noite eu o ouvir ganir até se afogar;

Eu não me lembrava dos idosos
Até participar dos resgates;

Eu não sabia cozinhar
Até ter na minha frente uma panela com arroz e crianças com fome;

Eu achava que a minha casa era mais importante que as outras
Até ver todas cobertas pelas águas;

Eu tinha orgulho do meu nome e sobrenome
Até a gente se tornar todos seres anônimos;

Eu não ouvia rádio
Até ser ela que manteve a minha energia;

Eu criticava a bagunça dos estudantes
Até que eles, às centenas, me estenderam suas mãos solidárias;

Eu tinha segurança absoluta de como seriam meus próximos anos
Agora, nem tanto;

Eu vivia numa comunidade com uma classe política
Mas agora espero que a correnteza a tenha levado embora;

Eu não lembrava o nome de todos os estados
Agora guardo cada um no coração;

Eu não tinha boa memória
Talvez por isso eu não lembre de todo mundo,
Mas terei mesmo assim o que me resta de vida para agradecer a todos.

Eu não te conhecia,
Agora você é meu irmão;

Tínhamos um rio,
Agora somos parte dele.

É de manhã, já saiu o sol e não faz tanto frio.

Graças a Deus!

Vamos começar de novo.

*

É hora de recomeçar, e talvez seja hora de recomeçar não só materialmente. Talvez seja uma boa oportunidade de renascer, de se reinventar e de crescer como ser humano. Pelo menos é a minha hora, acredito.

Que Deus abençoe a todos.

Luis Fernando Gigena

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Tudo o que está escrito acima é transcrição fiel do que me foi enviado por email pela grande amiga Célia Borges, blogueira, jornalista, dona do blog Aldeia Global, com uma introdução da qual me aproprio de forma igual e que é assim:

“Amigos,

Repasso essa carta, para nos mostrar que, por piores que sejam nossos problemas, dificilmente serão comparáveis com o das pessoas que perderam tudo, bens, familiares, documentos...

E que hoje vivemos num mundo tão difícil, num país tão difícil, que até querer ajudar não é garantia de que se vai conseguir...

É uma realidade triste e dolorosa, mas conhecê-la só pode contribuir para o nosso crescimento e conscientização.

Namastê, Célia.”

Resolvi realizar a publicação integral desta carta porque não a encontrei nos arquivos do Google e, não existindo esse registro nele - uma fonte importantíssima de divulgação de tudo, ou de quase tudo que é postado em blogs – ela poderia passar menos percebida, não fosse a correspondência trocada entre blogueiros.

Coloquei o asterisco (*) quase ao final do texto principal desta postagem porque havia em seu lugar no email dois espaços de linhas em branco, deixando-me na dúvida se ali terminava o relato do argentino e recomeçava o do cidadão de Itajaí. Sem saber o que fazer, permaneço na dúvida se o Luiz Fernando Gigena é o argentino ou o brasileiro, o que sempre deixará um deles como autor anônimo.

Em todo caso, a postagem está feita conforme eu queria. Ia até dar-lhe outro título, tão do meu feitio, mas me contive e titulei-o da maneira mais objetiva dele ser encontrado na Internet e, assim, torná-lo mais conhecido num universo maior de pessoas.

Pessoalmente, confesso que as duas narrativas mexeram com a minha estrutura emocional. Cá, no íntimo do meu ser, é por coisas como o relato do brasileiro - e transpondo também para algum brasileiro as palavras do argentino, as quais pertencem a uma linguagem universal - que aqui me deixam repetindo pensativamente sobre as suas palavras “Eu quero mesmo é falar sobre lições aprendidas” é que às vezes digo que ainda me ufano de ser brasileiro.

- I bibida prus músicus!
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Update em 25.Dez.2008: Achei no Google o site do Luis Fernando Gigena, denominado Anjo de Luz, e a matéria dele aqui postada, cujo original ele intitulou de “Saiu o sol!”. Querendo confirmar, clique aqui. O meu asterisco marca o fim do relato do argentino, um anônimo na mensagem do Luis Fernando.

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