Não é à toa que a feijoada é um dos pratos preferidos pelos brasileiros, senão o mais popular de todos, e comigo não tem aquela dela ser servida apenas aos sábados, em restaurantes, tampouco somente aos domingos, em nossas casas. Para comer uma feijoada, qualquer dia da semana pode se tornar um dia ideal, realmente especial, dentro ou fora do meu calendário.
Também pudera! Não existe, no mundo inteiro, visão mais bela do que aquela de uma bela mesa toda arrumadinha, que cheira longe, ostentando um monte de tigelas de barro, onde a maioria dos seus conteúdos fica borbulhando sobre o calor de alguma chama que teimosamente as sapeca pelos seus fundilhos. É um mosaico de tonalidades distintas e contrastantes, próprio, inimitável e de identificação imediata, onde as cores preta, do feijão, a vermelha ou marrom, das próprias tigelas, a verde, da couve, a amarela, da farofa e da laranja e a branca, do arroz, se aglutinam numa das harmonias mais espetaculares de combinação de tons que nem a imaginação de Van Gogh teve a capacidade, a audácia ou a ousadia de misturar. Uma mesa assim representa, indubitavelmente, a plena garantia de um repasto honesto, homérico e sempre farto - o cobiçado troféu de qualquer mortal que pensa no paraíso e que dá mais satisfação do que encontrar a arca perdida do Indiana Jones.
Para mim e para alguns parentes e amigos, é fato consumado que participar de uma delas se constitui numa experiência tão marcante e emocionante que a ocasião – podem ser dezenas, centenas delas - entra na nossa memória e ali fica arquivada eternamente. Fica o acesso a elas, entretanto, de maneira total e com a maior facilidade, disponível a qualquer tempo para trazer à tona um baú de recordações, de conotações saudosas e agradáveis, de outros momentos semelhantes, de outras feijoadas saboreadas. “- Lembra daquela feijoada?” é uma pergunta que uma vez realizada, sempre fornece sustentação para o início e o prolongamento de um descontraído bate-papo, que pode se prolongar por horas a fio, cheio de lembranças, de conversas, de risos e de sorrisos e até, por incrível que pareça, de recordações de gostos e de cheiros, como “...os daquela farofinha com ovos estraçalhados e bacon que a Luísa fez, lembra-se?”.
Participar de uma delas, com a família, com os amigos, na nossa casa ou na casa deles, ou até mesmo com os colegas de trabalho em algum restaurante, é sempre uma experiência nova, nunca repetida, apesar do batuque no estômago ser o mesmo, porque cada uma cria personalidade própria, um fato tão importante que passa mesmo a fazer parte da nossa história e podendo vir a se constituir num dos mais significativos momentos de nossas vidas, quiçá possuidores de uma tal relevância que poderão tranqüilamente constar de alguma biografia em algum lugar no futuro.
Também, pudera, outra vez! Não há como resistir ao sabor de uns feijãozinhos pretinhos, bem temperados, rodeados de tudo quanto é lado por ingredientes de origem animal, tudo cozido junto, na maior intimidade e irmandade, podendo se dizer, até, numa relação do mais puro amor, unindo, sob a mesma causa e bandeira, orelha, pé, costela, focinho, rabo, lombo salgado, toucinho defumado, toucinho de barriga, paio, lingüiça calabresa, lingüiça de pernil fininha, tudo isso proveniente de alguns simpáticos porquinhos, criados e desenvolvidos alegremente em algum lugar do Brasil para, num belo e inesquecível dia, serem sacrificados e se transformarem em momentos dos mais significativos e profundos da nossa vã existência: matar a nossa gula! E bota alho, cebola, óleo, sal, pimenta e louro! Mais: carne-seca de boi, ou de vaca, ou de touro ou de bezerro mesmo (Coitadinho!), dos seus dianteiros ou dos seus traseiros, tanto faz, porque dá tudo na mesma coisa, no mesmo sabor gostoso, inolvidável, característico. Tem uns caras que ainda acrescentam mocotó – Que é pra feijoada ficar mais encorpada, ter mais sustância! – que é coisa que não faço, mesmo porque o mocotó tem o seu lugar de imponência próprio, emparelhado com a dobradinha, tão importantes como a feijoada nas minhas opções gastronômicas.
Para acompanhar o nosso feijãozinho com tudo aquilo que citei e para que esse cozidão se transforme numa feijoada verdadeira, com nome e sobrenome, temos que adicionar as tijelas de outras comidas na mesa, como o arroz branco soltinho, soltinho, farofinha nos trinques, laranja pera e muita couve refogada! Melhor que seja a da espécie manteiga, lisinha e da cor verde mostarda, cor essa também chamada de verde bosta de neném. Mas aquela da espécie portuguesa, com a beirada das folhas toda enrugada, bem verdona, também serve. E tudo isso regado a caipirinha, outro ícone da gastronomia brasileira e que não pode faltar em ocasião tão importante das nossas vidas!
Mas de onde veio essa delícia, quem foi o desgraçado abençoado que inventou essa massarocada – injuriosa, para uns - e gostosa de alimentos e que transformou tudo num prato que só de se ver enche a boca da gente de água? Existe uma unanimidade praticamente conclusiva sobre isso, todos dizendo que a feijoada é uma herança dos escravos quando, na senzala, aproveitavam as sobras dos alimentos desprezados pelos senhores da casa-grande: os restos do porco.
Pode ser aquela chamada de Carioca, seu berço de origem, para nós fluminenses; pode ser a Paulista, seu berço de origem 2, para os paulistas; pode ser a Mineira, seu berço de origem 3, para os mineiros; e por aí segue a ladainha com os outros 23 estados, devendo-se incluir Brasília, para não dizer que sou preconceituoso. Cada um revoga para si a autoria da sua criação, o que só a torna mais diversificada e, por conseguinte, mais atraente e desejada, seja lá em que canto do Brasil estivermos.
Uma minoria acredita que a sua origem tem a ver com receitas portuguesas, das regiões da Estremaduram di Alto Douro e Trás-os-Montes, que misturam feijão de vários tipos - menos feijão preto - lingüiças, orelhas e pés de porco. E ainda há outro grupo não identificado que afirma ser a feijoada um prato inspirado em outros pratos europeus, como o cassuoulet francês, que também leva feijão no seu preparo. Tudo invencionice de meia dúzia de Zés Manés papos-furados que se negam em reconhecer a supremacia dos brasileiros também neste terreno e que permite que afirmemos em alto e bom som, na ONU, ou sob a sacada do Big Ben, ou sob a Torre Eiffel ou sob o Arco de Brandengurg, pra quem quiser ouvir: “Yeeees, the feijoada gehört uns, mes amis!" .
E digo que é invencionice porque sei que os europeus (refiro-me aos suíços nativos da parte alemã da Suíça, com os quais convivi e que conheci in loco) raramente comem feijão, por ser o causador da produção de traques de maneira excessiva. É o contrário do que fazemos na nossa terra, onde sempre comemos nosso feijãozinho com muita satisfação, com uma constância e uma fidelidade dignas de um escoteiro, no almoço e na janta, e se o desgraçado falta, é briga na mesa, com toda a certeza. Só para exemplificar: a coisa é tão séria, que se ele sumir das prateleiras dos supermercados da cidade do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense, pode ocasionar uma revolução que não partirá dos traficantes e outros bandidos, mas das donas de casa e dos trabalhadores honestos, que, aí sim, serão apoiados pelos traficantes e outros bandidos, e também por todas as polícias do município e do estado sediadas lá, numa comunhão generalizada pela defesa de um interesse comum e que levará tudo quanto é carioca e que escondeu o seu trabuco a sair dando tiros pra tudo quanto é lado, pois, para eles, o feijão preto, e unicamente o dessa cor, é quase tão importante quanto o ar que eles respiram. Se isso ocorrer, ninguém conseguirá segurar a barra: cai Serginho, cai Cézinha e vira tudo um chapéu velho.
E nós, brasileiros, sabemos, quando queremos, como ninguém, em quaisquer situações ou plagas, disfarçar nossos traques, flactos, futuns ou peidos, liberando-os com alguma dose de cerimônia - outras vezes com a cerimônia indo pro escambau, junto com os perfumes ou fedores próprios dessa necessidade biológica e até, às vezes, com ares profundamente filosofais. E, se bobear, alguém inventa um pão de feijão para o nosso café da manhã! Não é à toa que muita gente adora macarrão com feijão! Imagina só: um belo prato de Spaghetti Bolognese al quattro formaggi com uma generosa conchada de um feijãozinho bem cremoso despejada sobre ele, tanto fazendo se do preto, do vermelho ou do carioquinha.
Após esses traillers, é bom que voltemos à nossa receita da feijoada papagoiaba, caso contrário a gente não acaba essa matéria nunca!
Muito que bem! A feijoada é um prato tão significativo da nossa identidade nacional que toda vez que uma delas fosse ser devorada, tal circunstância deveria ser antecedida por uma cerimônia cívica, com hasteamento da bandeira e todos cantando o “Ouviram do...”
E enquanto não se chega a uma conclusão sobre a sua origem, o máximo que podemos fazer é ir apreciando o seu sabor e aprendendo passo a passo a fazer essa delícia.
Antes, devo esclarecer três coisas: a primeira, é que este artigo estava na cartucheira de meus pensamentos e fazia parte das minhas intenções de um dia transformá-los num escrito, tendo a sua realização se tornado premente no exato momento em que resolvi fazer aquela pesquisa de mercado de todos os preços dos ingredientes para a Feijoada Papagoiaba e que publiquei no meu blog em 10 pp, que você acessa clicando aqui.
A segunda, é que ao publicar aquela matéria e denominá-la de “Lista de compras pra feijoada papagoiaba”, lancei como novidade um nome diferente para esse prato, que é uma fresca (nos dois sentidos) criação minha e que nada mais é do que uma feijoada ligth, mas que, uma vez lançado no ar, necessita de uma explicação para perguntas do tipo “- Mas que treco papagoiabense é esse?”.
E a terceira, finalmente, é que tomei como fonte de inspiração a matéria com uma receita de feijoada - que pouco tem a ver com a que publico neste post (Juro que chego lá!) - publicada lá pelo ano de 2005 num post do site da terra.com, do qual copiei as fotos (Que já não estão todas lá!) e algumas linhas da introdução da matéria apresentada pela Andresa Berger, grande redatora daquelas paradas. A relação de materiais e as quantidades de cada um de seus itens é que são resultados de profundos cálculos científicos, matemáticos, aritiméticos, metafísicos e mediúnicos de minha exclusiva autoria. E neste ponto devo humildemente confessar que terminado um rega-bofe na minha casa e os convidados terem se mandado, guardo tudo o que restou e ainda sobram cozidos para uns dois ou três dias na minha casa.
I vamu qui vamu pra receita da minha feijoada papagoiaba, que tem como característica principal a acrescência de generosa quantidade de carne seca e a quase eliminação de produtos suínos.
Mais uma observação pré-receita: Estou considerando 18 adultos comedores. No caso de crianças, considero 6 delas como um adulto.
Ingredientes:
1 cabeça média de alho
1,5 cebolas grandes
3 kg de carne seca, dessalgada e picada em cubos de 2 cm
600 g de lingüiça fininha de perni,l cortada em gomos de 2 cm
600 g de lingüiça paio, calabresa ou portuguesa, cortadas em rodelas de 1 cm
600 g de lombo/pernil, picados em cubos de 2 cm
600 g de toucinho defumado, picado em cubinhos de 1 (aqui é um mesmo) cm
1,5 kg de feijão preto
4 folhas de louro
Modo como eu faço:
Se a feijoada estiver programada para um domingo, sempre começo a sua preparação na quinta-feira, à noite, ou na sexta, de manhã. Nessa ocasião, lavo todas as carnes, as lingüiças e o bacon, e deixo tudo de molho em bastante água fria (Não preciso levar para a geladeira!), trocando toda a água a cada 6 horas, por umas 24 horas, no mínimo.
Na sexta-feira, à noite, escolho e lavo o feijão, colocando-o numa panela de pressão de 7,5 litros e cobrindo-o com bastante água. Deixo assim até o outro dia.
Pra mim, esse dia seguinte, véspera da festa, é o famigerado dia D, quando a feijoada deverá estar pronta e descansar até o dia seguinte para iniciar a apuração de todos os seus sabores.
Então, procedo à limpeza das carnes, retirando todas as gorduras do lombo/pernil de porco e retirando igualmente as gorduras e os sebos da carne-seca. Depois, pico ambas em cubos de 2 cm.
Escorro um pouco a água do feijão e adiciono a carne-seca (O lombo/pernil de porco, agora não!) e as folhas de louro. Cubro tudo com água, deixando um excesso dela de uns três dedos.
Tampo a panela e coloco-a em fogo alto. Quando começar a saçaricar, transfiro-a para uma das bocas traseiras do meu fogão, que são mais econômicas, e, ainda por cima, regulo para o fogo baixo. Nesse momento, ajeito o timer do fogão, que me avisará para desligar o fogo decorridos 20 (vinte) minutos.
Aproveito a folga e pico as lingüiças e o bacon, deixando-os reservados.
Avisado pelo timer, desligo o fogo e aguardo a pressão da panela ser descarregada, naturalmente ou forçada por mim, abro-a e acrescento todos os outros ingredientes, MENOS O BACON. Cubro com água e conservo novamente uns três dedos de excesso da mesma sobre o conteúdo. Levo a panela de volta pro fogo alto e, como na vez anterior, quando começar o saçarico, mudo-a para aquela boca traseira do fogão, na mesma posição de fogo baixo. Ligo o timer, agora para 25 (vinte e cinco) minutos, quando essa crucial etapa estará concluída.
Antes que isso aconteça, volto a aproveitar o tempo e descasco os dentes de alho e a cebola. Corto aqueles em fatias bem fininhas e esta em quadradinhos de 1 cm ou menos.
Como o bacon já está cortado em cubinhos de 1 cm, coloco-o numa frigideira e frito-os em fogo baixo até ficarem moreninhos, revirando sempre. Nessa operação, não saio da beira do fogão até que os cubinhos estejam no ponto desejado. Se ocorrer uma bobeira minha e deixar de realizar imediatamente a próxima operação, os cubinhos “queimarão” e ficarão empretejados. Assim, chegado o momento certo, numa ação relativamente rápida, retiro o excesso de gordura, deixando só um pouquinho para fritar o alho e a cebola picados, faço uma misturada com eles e mantendo tudo sempre no fogo baixo. Dou umas mexidas pra cá, outras pra lá, ainda outras pra acolá, com uma colher de pau, e quando a cebola estiver querendo amorenar, despejo tudo na panela de feijoada. Quando me apetece, adiciono um pouco ou toda a gordura derretida do bacon (Sabe como é, né?), só pra ficar mais cheirozinho!
Agora, com certo cuidado, mexo tudo com a costa da colher de pau, que é para não desmanchar os cubos de carne e os pedaços de lingüiça, revolvendo tudo, desde o fundo da panela.
Momento crucial, que é quando peço arrego: chamo minha esposa para provar o sal e completá-lo, coisa que sempre ocorre!
Deixo ferver até ficar bem quentinha (Faça o favor de não deixar borbulhar!), por uns quinze ou vinte minutos, apenas para que todos os sabores se combinem definitivamente.
Pronto! Bom apetite!
Pulo do gato, que pouco ou nenhum cozinheiro de Resende ou da região sabe, ou poucos do Brasil sabem, que eu sei, ensinado que fui pelo Maître Epaminondas Herculano do Bom Jesus de Pirapora Rosa, quando freqüentava o restaurante dele em São Paulo, nos Jardins:
- Com o cozimento, o feijão preto perde um pouco da sua cor original, absorvida pelas carnes e lingüiças, ficando num tom esmaecido, parecido com um marrom cocô. Para reverter isso, coloco um corante preto quando daquela misturação da cebola, alho e bacon com o feijão. Mas cuidado: retire o corante do seu frasquinho com a ponta de uma colherinha de cafezinho e misture bem, porém sempre devagarzinho. Verifique o resultado. Se quiser, adicione mais um pouquinho, misture e torne a verificar. Mas vá adicionando sempre aos pouquinhos, senão fica tudo muito preto!
- Esse corante é fabricado pela Coralim, tradicional fabricante nacional desses belengos, tem o nome de “corante artificial para fins alimentícios”, cor preto ameixa, e vem num frasquinho plástico com 5 g. Pela quantidade, dá pra desconfiar que ele é capaz de empretejar a coisa, mesmo!
- Fotos: Rogério Lorenzoni/Terra
- I bibida prus músicus!
Um comentário:
Realmente gente, essa feijoada é de tirar o fôlego. Um espetáculo.
Tá na hora de fazer outra heim, pai.
Bjo.
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